Orientação e mobilidade para crianças com baixa visão: qual é a base de tudo?

07/08/2019 0 Por Maria Amélia M. Franco
Orientação e mobilidade para crianças com baixa visão: qual é a base de tudo?

Você acredita que todos têm o direito de ir e vir? A criança com baixa visão também tem! Então, você já pensou que ela pode ser estimulada a desenvolver habilidades para sua orientação e mobilidade desde cedo?

Antes mesmo de você imaginá-la andando e a qualquer tempo…

A técnica de orientação e mobilidade, conhecida pela sigla OM, é certamente um passaporte para a conquista da autonomia e independência. Desde os deslocamentos mais simples, como ir ao banheiro em casa, passando pela prática de esportes e participação em brincadeiras, até os mais complexos, como transitar por um parque na cidade.

Ou, ao menos, é uma forma de reduzir a dependência que lhe é natural, considerando as falhas de acessibilidade em todo o lugar… inclusive em casa (veja nossa publicação sobre como melhor incluir a criança com baixa visão em casa).

Então, você já parou para pensar que estamos em trânsito, nos deslocando e percebendo o ambiente desde o primeiro momento de vida? No colo de um adulto, na cadeirinha do carro, no carrinho… e ampliamos nosso caminho exploratório com mais independência ao rastejar e, logo depois, engatinhar?

Somos seres em movimento, precisamos disso! Por isso o planejamento motor é tão importante para o desenvolvimento infantil.

Assim, proponho aqui as primeiras pinceladas sobre OM para crianças com deficiência visual. Vamos fazer algumas reflexões e pensar sobre estímulos que seriam o pontapé inicial para trabalhar a orientação e mobilidade?

Depois este assunto continua em novas postagens, em que abordarei aspectos para a avaliação e um programa de intervenção. Acompanhe!

CONCEITOS

Orientação tem a ver com a consciência do espaço, a partir de um mapeamento da localização das coisas, de pessoas e animais, e da compreensão da posição que o próprio corpo ocupa nesse espaço. Nossos sentidos se integram para estabelecer essas relações perceptivas de orientação espacial: noções de posição, de direção e de amplitude, englobando conhecimentos de conceitos como em cima ou embaixo, à esquerda ou à direita, na frente ou atrás, ao redor de, dentro e fora, alto e baixo, perto e longe, grande e pequeno, largo e estreito…

Mobilidade é simplesmente a capacidade de se locomover com segurança, eficiência e independência, movimentando-se naturalmente em resposta às demandas de ação motoras: andar, sentar-se, desviar, pegar…

As pessoas com baixa visão podem realizar seus trajetos com a ajuda de um guia vidente (como chamamos quem enxerga bem); usando seu próprio corpo como autoproteção; com o auxílio de uma bengala; ou com o uso de tecnologias de acessibilidade que emitam sons ou comandos. O ideal é buscar em instituições especializadas um profissional que ensinará as técnicas de Orientação e Mobilidade adequadas caso a caso.

A experiência do movimento para a prática de Orientação e Mobilidade

Na verdade, antes quero falar da importância de explorar o corpo, como parte do perceber, do sentir, do existir. Sem estar vendados, muitas vezes não nos damos conta do uso de nossa parafernalha corporal!

Mas é normal usarmos ela, seja seu todo, suas partes. É natural, intrínseco ao ser. Todo ser humano.

Por isso, resgatei a leitura de uma publicação do Instituto Benjamin Constant que fiz há alguns anos. Relendo, percebi por que para mim não fazia sentido simplesmente falar direto de como atuar na orientação e mobilidade sem abordar esses aspectos…

“As experiências que passam pelo corpo, estimulam o equilíbrio, as posturas, os movimentos e a autoconfiança. Promovem o conhecimento do mundo, produzem prazer e bem-estar, que fazem bem à alma; expressam as emoções.”
trecho da obra Mosaico no Tempo: uma inter-ação entre corpo, cegueira e baixa visão,
de Maria Rita Campello Rodrigues, publicada pelo Instituto Benjamin Constant em 2014 (pág. 48)

É difícil mensurar como cada criança com baixa visão vê. Assim como é difícil prever, em cada diagnóstico, a manutenção ou deterioração dessa visão.

Portanto, parto do princípio que para ela a consciência do movimento (cinestesia), o sentir, o cheirar, o ouvir e o perceber o espaço é seu modo de “ver” melhor. Isso não pressupõe deixar de usar o seu resíduo visual, mas integrá-lo. Ou seja, ampliar as conexões neurais que vão além de enxergar, que dão sentido às coisas.

Não é simples, requer “treino”. Naturalmente nos certificamos sobre aquilo que tocamos, ou aquele barulho que ouvimos com os olhos. Não é diferente para a criança com certo grau de visão mantida.

Por outro lado, por que confiar na visão turva e muitas vezes distorcida da realidade como única possibilidade de ver? Penso que, talvez, confiar nos demais sentidos, diante da visão reduzida, possa ser um divisor de águas no processo de mobilidade com maior independência e segurança.

“Muitos profissionais que atuam na área da cegueira e da baixa visão opinam que esta última pode ser, em determinadas situações, mais desconfortante do que a primeira. Eles afirmam que o cego aprende tátil-proprioceptivamente o movimento, repete-o inúmeras vezes e incorpora-o. Já a pessoa que tem baixa visão precisa estudar, medir, verificar antes de se arriscar no movimento. Muitas vezes, a forma como ela enxerga é distorcida da realidade e a engana. Os detalhes e a noção de profundidade podem ser consideravelmente complexos para ela.”
trecho da obra Mosaico no Tempo: uma inter-ação entre corpo, cegueira e baixa visão,
de Maria Rita Campello Rodrigues, publicada pelo Instituto Benjamin Constant em 2014 (pág. 81)

Como estimular a criança com baixa visão desde bebê para a orientação e mobilidade?

O que apresento aqui vai além da autonomia, da autoconfiança e da locomoção da criança com baixa visão. É uma porta que se abre do seu mundo interior (passivo, recolhido, temeroso) para um mundo exterior rico em sensações e possibilidades.   

  • Ensine conceitos relacionados ao esquema corporal

Apresente as partes do corpo através do brincar, da música e de ações corriqueiras. Como não lembrar da canção “cabeça, ombro, joelho e pé”… Ajude a criança a entender como o corpo dela se move, explorando os seus sentidos e a linguagem. 

  • Com a esponja no banho diga qual a parte do corpo está limpando (cabeça, cabelos, no rosto os olhos, o nariz, a boca, tronco, membros). Ajude a desenvolver sua autopercepção, a aprender a sentir seu próprio corpo.
  • Ao vestir-se narre quando estica e encolhe as pernas, levanta os braços, coloca as meias nos pés, fecha as mãos para passar a manga etc.
  • Manipule um brinquedo de pelúcia. Assim como a esponja, ele também pode percorrer todo o corpo da criança. Além de ser pisado “com os pés”, torcido “com suas mãos”, apertado “dobrando e fechando os dedos”, esticado “afastando os braços”, virado “de um lado ou de outro”, arremessado… Estimule a criança a pegar em você e perceber as semelhanças e diferenças, aperfeiçoando visão e sensação tátil. 
  • Estimule tantas outras experiências desde o virar-se, rastejar, engatinhar, dar os primeiros passos, empurrar, correr, pular, usar suas mãos como anteparo, sentar-se etc.– cada uma a seu tempo. Não tema o risco de fazer qualquer coisa com baixa visão, apenas ofereça condições de realizá-los com segurança. Ajude a perceber o que acontece com as articulações e os membros quando o corpo se movimenta.
  • Leve sua atenção aos diversos estímulos sensoriais à sua volta

Como se comportam os sons do ambiente?  Como é o som dos motores dos veículos quando se aproximam e se afastam na rua? Qual a diferença do som ao bater na madeira, no vidro, no metal ou em material plástico? Como perceber se o som é de algo que está perto ou longe, e de onde será que ele vem? Como são as texturas e as formas dos objetos, dos tecidos, dos diferentes tipos de botão das roupas e dos alimentos? A temperatura dos materiais ao serem tocados, quente, frio? E os aromas? Já pensou o que um simples passeio na feira pode revelar?

Essas sensações são pistas importantes. Há quem cole texturas e formas nos objetos de vida diária para ajudar a identificá-los (cada um terá suas necessidades específicas).

A partir dos 2 anos ela começará a compreender melhor tudo isso, mas desde cedo exponha a criança a esses estímulos e converse com ela.

Porém, além de ajudar a criança a desenvolver sua percepção sensorial incentivando-a a explorar uma variedade de ambientes e objetos, sobretudo direcione sua atenção às informações sensoriais úteis.

  • Explore conceitos espaciais

No dia a dia, brincando, arrumando o quarto, preparando a mesa para servir a refeição, passeando na rua a pé, no ônibus, acessando corredores, elevadores, escadarias etc. Ensine a criança a

  • entender onde ela está em relação ao mobiliário ou a um objeto;
  • relação espacial entre os objetos;
  • perceber distâncias e a amplitude do espaço em si.

Para isso, ela precisa tocar, explorar ao redor, além de contar com o seu resíduo visual.

Entre 2 e 6 anos ela começará a entender conceitos como “à direita ou à esquerda”, “à frente ou atrás”, “acima ou abaixo de”, “longe ou perto”, “lá no alto ou ali embaixo”, “estreito ou largo”, “curto ou longo”, “começo ou fim” e tantas outras noções espaciais que serão apuradas conforme seu desenvolvimento e suas experiências.

Conceitos mais amplos que extrapolam o espaço vivido, como as relações geográficas (onde está a casa, na quadra, no bairro, na cidade, no estado… vão amadurecendo até os 11 anos, e podem ser explorados em passeios e viagens e por meio de maquetes, brinquedos e relações.

  • Estimule a ação e a iniciativa

Incentive a criança a desenvolver suas habilidades motoras grossas e finas. É de uma baboseira enorme espantar-se com as capacidades que as pessoas com deficiência visual têm de se “virar sozinha”. Isso é o natural, estranho é crer que não sejam capazes. A criança pode subir escadas, correr, pular, brincar nos parquinhos, participar de gincanas com obstáculos, arremessar e pegar bolas, nadar, balançar, escalar uma parede, puxar e empurrar um carro de compras ou de bonecas… abrir e fechar um pote, aprender a fazer um bolo… brincar com encaixes, alinhavos, fazer torres, modelar massinha, abotoar etc…

Tudo o que fazemos de forma automática é uma ação aprendida. São várias! Observe, anote e planeje o que fazer com a criança! Surgirão dificuldades, mas todo o aprendizado pode ser adaptado e ajustado para acontecer com segurança. Aprender e aprimorar a sua coordenação motora será a forma mais segura para sua orientação e locomoção com autonomia e independência conforme a criança cresce.

Para finalizar, deixo 5 dicas:

  • seja um narrador de tudo que acontece, ao passo que as coisas estão acontecendo. E torne o aprendizado o mais lúdico possível;
  • amplie a aprendizagem com o seu toque na condução de cada novo movimento sempre que necessário;
  • use de brilho, contraste e de pistas táteis e sonoras nos ambientes e objetos, promovendo o melhor uso da visão residual da criança;
  • continue explorando o grau de visão mantido, estimulando-a a localizar, identificar e fazer uso das pistas visuais em conjunto com os demais sentidos;
  • quase toda brincadeira e recurso que é natural para quem enxerga bem, podem ser adaptados para a criança com baixa visão. Além disso, opte por brinquedos caseiros, que aproximem a criança da realidade dela, dos sons e texturas do dia a dia, que muitos brinquedos eletrônicos não poderão ofertar. Lembre-se que essa aprendizagem táctil e auditiva norteará sua orientação e mobilidade. Use a imaginação e pesquise ideias na linha montessoriana!

Não espere que alguém explique para você o que e como fazer. Tome a iniciativa e pergunte aos profissionais que atendem o seu filho como ajudá-lo nessas habilidades no dia a dia. Com isso, você fornecerá a base para desenvolver as conexões neurológicas demandadas para a orientação e mobilidade com segurança e destreza.

A intervenção no aprendizado do movimento

Será que a criança vê e identifica como nós videntes flexionamos as pernas e ganhamos impulso para pular? Como movemos os punhos e soltamos uma bola para que realize uma parábola no ar e chegue ao seu destino? Talvez ela precise ver e sentir.

Dependendo da distância e contraste que você se apresenta em relação ao fundo, pode ser complexo demais reconhecer as nuances dos seus movimentos para reproduzi-los. Ou de outros adultos e crianças. Por isso ela pode parecer desengonçada.

Além do mais, nos esportes, ela identifica a bola? Percebe o traçado no chão para percorrer um trajeto e posicionar-se corretamente no jogo? Favoreça o aprendizado usando recursos com bom contraste de cores!

Claro que a livre tentativa é inicialmente saudável! Mas para locomover-se no dia a dia, praticar esportes e participar ativamente de brincadeiras com desenvoltura (ou ao modo de quem vê), a criança pode se beneficiar de um controle e refinamento corporal.

Assim, em certo momento pode ser interessante você aproximar-se, tocar a criança e realizar aquele ajuste fino na sua postura, posição e na condução do movimento preciso dos quadris, braços, mãos, pernas e pés. Bem como incentivá-la a tocar o outro para sentir como fazer, já que a acuidade visual dificulta a aprendizagem pela imitação.

Una-se a nós, por um novo olhar sobre o desenvolvimento e a aprendizagem da criança.

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